Carta Aberta sobre o
USP Destaques nº 56
As entidades representativas dos estudantes, funcionários
técnico-administrativos e professores da Universidade de São Paulo vêm,
por meio desta, expressar sua preocupação com o conteúdo do boletim USP Destaques n° 56, de 9/3/2012.
O referido boletim tem como título “A democracia da USP” e inicia com um questionamento ao Manifesto pela Democratização da USP,
assinado por 70 vítimas da ditadura militar, seus familiares, 245
docentes da USP e 217 professores de outras universidades do país e do
exterior.
Concordemos ou não com o Manifesto, no todo ou parte, julgamos
inadmissível que a Reitoria da USP ponha em questão o fato de que seus
signatários, sob a rubrica “familiares de mortos e desaparecidos,
ex-presos e perseguidos pela ditadura”, representem ou tenham sido, de
fato, vítimas do regime de exceção iniciado com o golpe militar de 1964.
Ao afirmar que os signatários são “autointitulados perseguidos
pelo regime militar, parentes de companheiros assassinados... e
defensores dos princípios por eles almejados”, a Reitoria transpõe para o
plano subjetivo – logo, passível de relativização – o reconhecimento
dos crimes cometidos pelo Estado brasileiro durante a ditadura. Tal
negação histórica, arbitrária e desqualificadora em si mesma, assume um
caráter extremamente grave ao ser emitida pelo órgão máximo de uma das
maiores e mais importantes universidades públicas no país.
O USP Destaques n° 56, apesar de tentar deslegitimar o citado Manifesto,
desenvolve temas que, embora referidos nele, dizem respeito ao atual
momento vivido pela USP. É o caso, por exemplo, da negação de
“perseguições políticas no seio da Universidade”. A alegação central da
Reitoria é a de que os processos contra membros da comunidade uspiana
não dizem respeito a “manifestações individuais ou coletivas”, mas sim a
“ações (....) consideradas como crime pelo Código Penal Brasileiro”.
Temos consenso quanto ao princípio de que numa democracia vigorem os
mecanismos que permitam atribuir aos cidadãos a devida imputação de
responsabilidade pelos seus atos. No entanto, não cabe à administração
universitária punir alguém penalmente, o que torna a menção ao Código
Penal, feita no boletim, de uma inconsistência que só revela tendência
autoritária.
Sobre os processos disciplinares instaurados pela Reitoria, alguns
deles com início na gestão anterior, sabe-se que, no caso de Claudionor
Brandão, demitido “por justa causa”, não houve a necessária ação
judicial para apuração desta, como prevê a legislação trabalhista, tendo
sido o sindicalista punido pelo fato de, atuando em solidariedade com
os trabalhadores terceirizados, ser acusado de reincidência. O fato que
originou a alegada reincidência ocorreu em momento anterior ao ato que
gerou a primeira punição. Ainda assim, ressalte-se que, em virtude da
estabilidade prevista na Constituição aos dirigentes sindicais, Brandão
não poderia ter sido demitido por meio de processo administrativo
interno da USP, mas somente mediante processo na Justiça do Trabalho. A
demissão do sindicalista antecipa a instauração de processos e ameaças
de demissões de vários outros dirigentes do Sintusp, também pelo exercício
de atividades sindicais que lhes são próprias, ao mesmo tempo em que se
ignora a ocorrência de fatos que necessitam ser devidamente apurados,
como a denúncia feita pelo Sintusp sobre a tentativa de atentado à sua
sede em 12/01/2012.
Intimidação
Já no caso dos oito estudantes expulsos em dezembro de 2011, não está
claro no processo que os punidos tenham efetivamente sido autores dos
atos a eles atribuídos. Além disso, na Portaria que instaurou o processo
administrativo contra os estudantes não há qualquer menção aos “crimes”
que lhes foram imputados pela Reitoria no USP Destaques. O fato é que, na Portaria, há referência apenas à “invasão e ocupação das dependências da Divisão de Promoção Social da Coordenadoria de Assistência Social (...),
ocorrida no dia 18 de março de 2010, por volta das 1h15min”. A mesma
acusação, sem qualificações, aparece no Decreto que torna pública a
decisão de expulsão dos estudantes, considerando “verdadeiros os fatos
que lhes são imputados quanto à invasão e ocupação das dependências da
Divisão de Promoção Social da COSEAS no dia 18.03.2010” (Cf. Nota sobre o
USP Destaques n° 56 do advogado desses estudantes, Aton Fon Filho. http://goo.gl/62gLu).
Portanto, tal punição não ocorreu por crimes como depredação do
patrimônio público ou extravio de documentos, mas pelo ato de ocupação
em si, que pode ser facilmente considerado como “Protestos
extraordinários (...) por meio de demonstrações”, que o próprio boletim
da Reitoria considera “cabíveis em um Estado democrático de direito,
como o Brasil”.
Tanto no caso do sindicalista como no da expulsão dos estudantes há
graves irregularidades que indicam a perseguição de pessoas que ousam
agir politicamente na USP para reivindicar direitos, fato este reforçado
quando se considera a quantidade de processos disciplinares instaurados
desde o início da gestão do atual Reitor. A maior evidência da
fragilidade dos processos que resultaram na expulsão dos estudantes é
que os mesmos começam a ser contestados na Justiça, gerando uma
desnecessária exposição pública da instituição, fato que já estava
ocorrendo desde a dispensa abrupta de 270 aposentados em janeiro de
2011.
Se é verdade que a apuração de crimes não constitui perseguição
política, também é verdade que a atribuição aleatória de culpa a
constitui, uma vez que produz intimidação, insegurança e medo,
desencorajando os membros da comunidade universitária a engajar-se
publicamente nas questões e na solução de problemas da instituição.
É nesse contexto que se identifica como tentativa de intimidação a
interpelação judicial por meio da qual a Reitoria alega buscar
explicações da diretoria da Adusp, por conta de supostas declarações
críticas à atual administração. Embora a lei brasileira proteja os
cidadãos contra crimes de “calúnia e difamação”, tentar atribuir teor de
“calúnia e difamação” a análises de conteúdo político sobre
instituições públicas e seus dirigentes, feitas com vistas a tornar mais
claras as motivações de atos administrativos, configura óbvia tentativa
de cerceamento do direito de manifestação da entidade de classe, que –
no limite – pode ser interpretada como censura e abuso de poder.
Disparidade
A nota da Reitoria afirma que é um direito legítimo da Administração da
USP recorrer ao Poder Judiciário e que os próprios setores que
contestam sua política já mobilizaram, outrora, esse mesmo Poder. Tal
comparação é descabida, considerando-se a disparidade entre, de um lado,
o poder de mobilização judicial de estudantes e servidores e, de outro
lado, o poder da Reitoria da USP, além da dissonância dos propósitos das
partes. Estudantes, técnico-administrativos e docentes vão ao
Judiciário para reaver direitos atingidos por ato de poder da
Administração pública e esta, sem abrir mão de seu poder institucional,
ainda se vale do Judiciário para reforçá-lo perante estudantes e
servidores, os quais, por conseguinte, são tratados como adversários,
instaurando-se um clima de autêntica repressão, com negação direta do
que é essencial na construção democrática das relações institucionais – o
diálogo, apesar do discurso em contrário (Cf. o então
candidato a reitor, João Grandino Rodas, Informe n° 2, “Princípios
Norteadores Principais”, São Paulo, 5/10/2009).
Enquanto a Reitoria dispõe de meios institucionais para intervir
diretamente na vida universitária, com amplas consequências no cotidiano
e futuro de seus membros, estudantes e servidores recorrem ao
Judiciário como medida defensiva, que pode dar resultados apenas em
médio ou longo prazo, sob risco de perda de direitos adquiridos,
incluindo meios de subsistência. Nenhum desses riscos corre quem usa o
Judiciário enquanto dirigente de instituição. Para estes, o recurso ao
Judiciário constitui opção política que substitui o diálogo e a
negociação, ou que precede a todo diálogo, justamente como acaba de
mostrar a Reitoria na interpelação judicial impetrada contra a diretoria
da Adusp por declarações a ela atribuídas e publicadas em editorial do
jornal O Estado de S. Paulo de 25 de fevereiro de 2012.
Outra questão levantada no USP Destaques n° 56 é a presença – ou “permanência”? – da Polícia Militar no campus
Butantã. Valendo-se de um tom irônico, a Reitoria afirma que aqueles
que questionam a recente mobilização da PM pela Reitoria contestam, na
verdade, o poder de polícia conferido a essa corporação pela
Constituição Federal, de modo que, para recusar a atuação da PM na USP,
seria necessário: “1) emendar a referida Constituição; ou 2) parte do
território nacional se proclamar novo Estado soberano e ser reconhecido
pela comunidade internacional”.
Ao sugerir que o que está em jogo é uma negação de toda e qualquer atuação da PM no campus,
deturpa-se a reivindicação de amplos setores da universidade que
defendem a anulação do convênio estabelecido pela direção da USP em 2011
e a consequente retirada da PM do campus da USP. Caberia
perguntar: antes da formulação de tal convênio, a Cidade Universitária
não estava inserida em um Estado soberano, como sugere ironicamente o
boletim?
Já é tempo de o Reitor dispor-se a discutir com seriedade e respeito os
assuntos que afetam a universidade. O que motivou este protesto é
precisamente o convênio que militariza o campus e tem recebido questionamentos jurídicos e políticos bem fundamentados, dentro e fora da USP.
“Aberração”
Assim, por exemplo, o jurista e professor de Direito Penal da
Universidade Federal de Minas Gerais, Túlio Vianna afirma, em artigo
publicado na revista Fórum de 9/1/2012 <http://goo.gl/YZgkY> que “A presença da Polícia Militar nos campi
das universidades públicas brasileiras é uma aberração jurídica que só
pode ser superada com a criação das guardas universitárias ou o seu
fortalecimento onde ela já existe, como é o caso da USP.” Sua apreciação
tem por base o fato de a USP ser uma autarquia e se referenda,
justamente, no funcionamento da segurança em outras autarquias. Do mesmo
modo, a própria PM-SP, na figura de seu Ouvidor, Luiz Gonzaga Dantas,
afirmou à Rádio Brasil Atual que o convênio USP–PM devia ser questionado
e que a Ouvidoria da PM pediria audiência com o reitor Rodas para
revisá-lo. A declaração foi motivada por avaliação da agressão, em
janeiro último, por um policial que, sem qualquer justificativa, apontou
arma de fogo para a cabeça de um aluno, dentro de espaço dos estudantes
da USP, depois de ter-lhe dado tapas na cara.
Além de ser objeto de questionamentos de pessoas externas à USP, o
citado convênio também foi questionado, com fundamentação, por
representantes em vários colegiados. Assim, é estranho que a Reitoria
reclame, no mesmo USP Destaques, de uma suposta omissão dos
representantes de estudantes e servidores na vida institucional da USP.
Isso porque, na sessão do Conselho Universitário de 13/12/2011, o
convênio com a PM foi objeto de questionamento em intervenções das
Congregações da Escola de Comunicações e Artes e da Faculdade de
Educação, do representante dos doutores e de todos os representantes
discentes de graduação e pós-graduação. Antes disso, a Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas também havia manifestado a
necessidade de revisar o convênio e o DCE-Livre da USP havia divulgado
um conjunto de propostas alternativas. A Reitoria encerrou a sessão do
Conselho sem manifestar-se e, três meses depois, publica esse boletim no
qual sugere nada ter ouvido, recorrendo a zombarias sobre o real
conteúdo das propostas. É esse o convite que o Reitor nos faz à
participação na vida institucional?
Parece-nos evidente que, ao afirmar que a USP não perdeu sua
“capacidade de discutir internamente”, a Reitoria nega o anacronismo de
seus órgãos deliberativos internos, sobretudo no nível central,
refletido no Conselho Universitário. Destaque-se, neste sentido, que a
postura do próprio Reitor evoca prescindir do órgão máximo de
deliberação da universidade. Gera-nos estranheza que em 2011, ano em que
inúmeros acontecimentos e mudanças importantes incidiram sobre a USP, o
referido Conselho não tenha sido mais vezes chamado a opinar.
Não é de se estranhar, portanto, que diante desse esvaziamento das
instâncias internas de discussão e decisão da USP nenhum colegiado tenha
discutido e/ou deliberado, de forma necessariamente antecedente, sobre a
demissão de 270 servidores em janeiro de 2011. Tratou-se de uma
deliberação exclusiva da Reitoria que foi ocultada, inclusive, dos
diretores das unidades onde esses servidores trabalhavam. Nenhum
colegiado interno da USP debateu e/ou deliberou, também, sobre a criação
da denominada “sala de crise”, que, na verdade, é um relatório
minucioso das atividades políticas e sindicais, incluindo reuniões
internas do Sintusp, Adusp e DCE dirigido à Reitoria da USP, veiculado
originalmente em audiência pública da Alesp e posteriormente objeto de
ampla reportagem publicada pela revista Fórum, em janeiro de
2011, sem qualquer desmentido por parte da Reitoria. Se a existência de
um serviço de espionagem na universidade não é demonstração evidente de
autoritarismo, o que seria?
Igualmente, os colegiados da USP não deliberaram a expulsão de
estudantes em dezembro de 2011. E, neste caso, é flagrante no despacho
do Reitor a inclusão, entre as alegações que “fundamentam” sua decisão,
do “respaldo de, praticamente, a totalidade dos dirigentes das Unidades
de Ensino e Pesquisa e Órgãos Centrais, expresso em documento datado de
13.12.2011”. É a mesma data da reunião do Conselho Universitário, em
cuja plenária nada foi dito, por parte da Reitoria, acerca dessas
expulsões, apesar de, durante a sessão, vários representantes terem
solicitado o fim dos processos contra estudantes e servidores e a
reforma do Regimento Disciplinar vigente. A esses fatos somam-se as
reformas feitas sem que nada indique sua urgência, como a que está em
andamento na pós-graduação.
Estatuinte
Por tudo isso, reafirmamos que a Universidade de São Paulo está
efetivamente perdendo a capacidade de discutir internamente. Que tenha
que ser o Ouvidor da Polícia Militar a lembrar à USP que ela goza de
autonomia e que deve preservar o ambiente de democracia e diálogo é uma
das expressões mais explícitas e paradoxais da crise institucional que
vivemos. Para nós, é evidente que não é com ameaças de
“responsabilização, inclusive penal”, como as que encerram a nota
pública divulgada pela Reitoria em seu boletim USP Destaques n° 56, que enfrentaremos e superaremos a deterioração da vida comunitária, universitária e institucional em curso na USP.
Afirmamos, ainda, pelos motivos apontados anteriormente, que é
absolutamente inaceitável a forma como a atual Reitoria vem
administrando, gerindo e representando a universidade e argumentamos que
é necessária a instauração de um processo Estatuinte, amplo e
democrático, princípio este que defendemos há mais de duas décadas, pois
é urgente uma profunda reforma dos estatutos e regimentos internos da
USP!
São Paulo, 27 de abril de 2012
Adusp, Sintusp e DCE-Livre da USP
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